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Reflexões sobre a expressão de afeto na masculinidade: o mentor

Atualizado: 1 de jul. de 2023


Imagine uma história, pode ser um filme ou uma série, onde um ex-general que perdeu o filho na guerra busca na relação com o sobrinho uma oportunidade de redenção. Talvez você tenha pensado em um grande drama indicado ao Oscar, ou quem sabe um filme europeu alternativo do período pós guerra. Mas não, a inspiração para este texto é o Tio Iroh, personagem do desenho animado "Avatar: a lenda de Aang".


Inicialmente apresentado como um alívio cômico, Iroh é tio de um sobrinho que foi exilado, abandonado e rejeitado pelo pai como resultado do desafio à sua autoridade. Em busca da restauração de seu status como príncipe Zuko tenta capturar Aang, protagonista do desenho. Sem o poder e a autoridade da paternidade, Iroh oferece conselhos e suporte ao sobrinho sempre que necessário, porém acaba muitas vezes sendo colocado em um segundo plano. Tanto por Zuko quanto pela própria trama.


Esta dinâmica se prolonga por aproximadamente três temporadas, quando finalmente somos apresentados a seguinte cena:


Iroh se afasta da cidade com uma expressão serena após fazer compras no mercado. Sentado à sombra de uma árvore solitária no topo de uma colina, Iroh coloca uma pedra a sua frente e começa a mecher na cesta que carrega. Dela retira então um pergaminho, frutas e incenso. Com a voz marcada pela emoção Iroh diz: feliz aniversário meu filho, se ao menos eu pudesse ter te ajudado.


Enquanto lágrimas escorrem de seus olhos, sentado à frente do retrato de seu falecido filho, Iroh canta a seguinte música:



"Folhas da parreira,

caindo devagar.

Como conchas frágeis

a flutuar...


Pequeno soldadinho,

para casa à marchar.

Corajoso soldadinho,

não pode chorar."


Responsável talvez pela maior parte das lágrimas derramadas durante a animação, esta curta cena fala muito sobre o personagem e sobre o tema do nosso texto de hoje. Dentre os diversos papéis que assumimos nos diferentes momentos da vida, muitas vezes cabe ao homem atuar como esta figura que orienta e aconselha. O mentor costuma ser experiente e possuidor do conhecimento que o pupilo deseja obter. Pode ser representado por um professor, tio ou até mesmo irmão mais velho. Desprovido de uma autoridade inata, o mentor é escolhido voluntariamente pelo pupilo e recebe, ao mesmo tempo, o respeito daquele que o escolheu e a responsabilidade por sua orientação.



A capacitação como expressão de afeto


Como representado pelo personagem do tio Iroh, o papel do mentor é marcado principalmente pela sua função de educador. Entretanto, não estamos falando aqui apenas da transmissão do conhecimento, mas também dos exemplos e vivências que o mentor coloca a disposição do crescimento de seu pupilo. Nesta relação, o afeto e o carinho são demonstrados principalmente através do processo de capacitação, do ensino de competencias e habilidades, pois é por meio dele que o mentor exerce um efeito transformador positivo na vida de seu pupilo.


A presença do mentor serve como modelo, exercendo ele os comportamentos e virtudes a serem desenvolvidos por aquele que está sob sua tutela. Simultaneamente, é de sua responsabilidade proporcionar desafios ao pupilo para que ele também possa exercer os comportamentos e virtudes desejados. É comum que histórias retratem o mentor com um passado sofrido, seja devido a infortúnios do acaso ou provenientes de seus próprios erros. Este sofrimento, transformado em conhecimento pela ação do tempo, será transmitido ao pupilo no intuito de evitar que sofra o mesmo que seu mentor. Diferente de outras relações, o afeto aqui não tem como objetivo principal promover o bem estar imediato, mas sim diminuir o sofrimento futuro através da capacitação do indivíduo.


Motivado pelo afeto e pela promessa da redução do sofrimento, o mentor exerce seu papel de educador através da administração de desafios e sofrimentos pontuais. Assombrado pela possibilidade de que seu pupilo, a quem ama, venha a sofrer seu próprio destino; o mentor pode apresentar uma postura superficialmente rígida e exigente. Entretanto, devemos lembrar que a exigência em demasia não é uma expressão adequada de afeto, e que um dos desafios de um bom mentor é justamente transitar por este estreito caminho entre a cobrança e a permissividade excessivas. Diversos mitos, inclusive o conceito de castração apresentado por Freud, atribuem à figura masculina a imposição de limites e ordem. Acredito que seja devido a esta associação que costumamos ver homens assumindo o papel de mentores em diferentes ambientes educacionais.


Diferente da professora, que também tem uma função educacional, o mentor não costuma exercer um afeto explícito e maternal. Um bom mentor entretanto consegue equilibrar exigência e permissividade, acolhendo o pupilo em momentos de fragilidade e exigindo dele as competências e virtudes a serem desenvolvidas nos momentos de conflito; sejam eles internos, dilemas éticos e morais, ou externos, conflito com pares e sociedade. A crença de que são nos momentos de crise que temos as maiores oportunidades de crescimento é parte importante da personalidade do mentor, um indivíduo que não compartilha desta crença dificilmente terá a disposição de assumir este papel. O exercício da ordem e do limite motivados pelo afeto não é uma tarefa fácil. O conflito, a frustração e o erro são elementos quase que constantes na relação entre pupilo e mentor.


A expressão de afeto em momentos de crise


Comum entre homens, as demonstrações de afeto encobertas — expressas através de outros comportamentos e emoções — são o principal meio pelo qual o afeto positivo se manifesta nesta relação. Pode parecer contra-intuitivo, porém é justamente através da experiência de emoções negativas que o mentor ensina o valor e a importância do afeto a quem está sob sua tutela. Se levarmos em consideração os princípios de reforço e punição introduzidos por Skinner em sua teoria behaviorista, a diminuição das chances de experimentarmos emoções negativas no futuro tem função reforçadora em comportamentos executados pelo indivíduo. Sendo assim, tudo aquilo que reduz as chances de seu pupilo experimentar emoções negativas no futuro é motivado, executado e percebido como expressão de afeto, carinho e cuidado.


Para aquele que não está ciente desta dinâmica, a relação entre mentor e pupilo pode parecer desagradável, fria ou até mesmo conflitante. Porém esta é uma perspectiva limitada e superficial de sua relação. O mentor expõe o pupilo a experiências negativas e potencialmente frustrantes pois é através do aprendizado e capacitação oferecido por elas que o afeto entre ambos se expressa e o vínculo se constrói. Para que isto de fato aconteça, o pupilo deve ver o mentor não como alguém que lhe faz mal, mas sim como aquele que lhe oferece os desafios necessários para seu desenvolvimento. Da mesma forma, o mentor deve ver o pupilo não como alvo de raiva ou agressividade, mas sim como uma pessoa amada que um dia deixará de estar sob seu cuidado e proteção. O movimento de recorrente quebra de homeostase combinado com sua interpretação positiva resume a expressão encoberta de afeto entre mentor e pupilo.


Entretanto, devido a condição humana, erros podem ser cometidos por parte do mentor. Este talvez seja este o momento onde muitos homens enfrentam dificuldades pois, ao longo de sua vida, boa parte da população masculina não foi ensinada a demonstrar afeto de forma explícita também. Teorias de educação falam muito sobre o que chamamos de zona de crescimento proximal; situação onde aquele que está sendo ensinado ainda apresenta dificuldades e resultados inconstantes, caso não haja auxílio na execução da tarefa. Neste momento o afeto, que antes era expresso de forma encoberta, deve se tornar explícito e evidente afim de ter seu efeito motivacional e protetor frente a frustração. Mais uma vez comparando com expressões tipicamente femininas de cuidado, a função do mentor costuma se diferenciar no fato de que sua intenção não é evitar a experiência negativa, mas sim evitar que estas se consolidem e se tornem permanentes. Crenças de incapacidade, auto eficácia limitada ou até mesmo sequelas físicas são os principais inimigos do mentor neste momento. Para que elas não ocorram é necessário sim a demonstração explícita de afeto, pois será através dela que iremos "curar" as feridas egóicas geradas pela frustração e pela falha.



Um exemplo a ser seguido


Ao longo da animação, observamos tio Iroh passar por todos estes momentos e desafios que o papel de mentor impõe. Podemos vê-lo desafiando Zuko e simultaneamente exercendo os valores e competências ensinados. Somos apresentados ao sofrimento de seu passado e tememos junto com ele pelo futuro de seu sobrinho. Acompanhamos e observamos os conflitos inerentes a esta relação e, principalmente, nos emocionamos com as demonstrações explícitas de afeto e carinho da sua parte.


Transformado pela sua trajetória, Zuko finalmente chega ao acampamento onde seu tio está. Com medo de uma resposta negativa, Zuko senta em frente a barraca onde seu tio dorme e relfete sobre o desafio que esta prestes a enfrentar.


Neste momento ele é questionado por Katara:


"está tudo bem?"


Zuko — "Não, eu não estou bem. Meu tio me odeia, eu sei. Ele me amou e me apoiou de todas as formas que podia, e ainda assim me virei contra ele. Como posso olhar em seus olhos?"


Incentivado pela amiga e motivado pela possibilidade do perdão, Zuko entra na barraca onde seu tio ronca despreocupado. É apenas na manhã seguinte, quando seu tio acorda, quem ambos se olham e, com uma expressão de sofrimento, zuko diz:


"Tio, eu sei que você tem sentimentos conflitantes em relação a mim. Mas eu gostaria que soubesse que sinto muito."


Lágrimas escorrem de seus olhos neste momento.


"Sinto tanta vergonha e arrependimento do que fiz, não sei como posso corrigir meu erro contigo..."


Zuko é bruscamente interrompido pelo abraço de Iroh e podemos ver que ele mesmo também chora.


"Como você pode me perdoar tão facilmente? Pensei que estaria furioso comigo!" Diz Zuko.


Iroh responde: "Eu nunca estive bravo com você. Eu estava triste, pois achava que você tinha perdido seu caminho."


Zuko — "Eu realmente o perdi."


Agora olhando nos olhos do sobrinho, ele responde: "Mas você o reencontrou, e por si mesmo! Eu estou muito feliz que você tenha encontrado seu caminho até aqui".



Autor:

Léo Hemann Strack

@psicologiadacoisa


Revisão e edição de Texto:

Débora Carvalho

@psideboracarvalho



Fontes:

Vídeo 1 - Iroh Sings Leaves From the Vine

Vídeo 2 - Zuko Apologizes to Iroh

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